sexta-feira, 15 de junho de 2012

Lembranças perdidas





Com 74 anos de idade, não há mais motivo para eufemismo. Clive Wearing está velho, tem cabelos brancos e usa óculos para enxergar melhor. Por outro lado, levanta, senta e anda sem qualquer dificuldade, com a disposição de quem já comandou corais na London Opera, na década de 1980. O terno e a formalidade não deixam escapar o quanto tem de inglês. Sua fala e sotaque confirmam. Tudo parece relativamente normal na vida do músico aposentado. A não ser por um detalhe: a amnésia.




"Ele não tem capacidade de reter qualquer impressão de qualquer coisa por mais do que um piscar de olhos", explica Deborah Wearing, autora do livro "Forever Today" (Para Sempre Hoje, em tradução livre), de 2005, ainda não lançado no Brasil. Esposa de Clive, ela é a única pessoa que ele reconhece nos últimos 27 anos, desde que uma infecção no cérebro afetou sua memória.



Clive guarda, no máximo, os últimos 10 segundos que se passaram. "Você faz uma pergunta e ele te dá a resposta, mas enquanto está te dando a resposta, já esqueceu a pergunta", diz Deborah. Parece piada de mau gosto, enredo de filme, mas é verdade – e triste.



Uma reportagem de 2006 da BBC, canal público da Inglaterra, dá uma amostra do quão surreal é a situação. Clive aparece sentado no sofá de sua casa, conversando com a mulher. Deborah se levanta por um instante e ele fica sozinho. No retorno, segundos depois, ele reage como se não a visse há meses: "Olhem quem está aqui!" Vem o abraço demorado, típico de quem mata uma longa saudade. A cena se repete constantemente a cada saída, a cada reencontro do casal, o dia inteiro, todos os dias.



Segundo Arthur Oscar Shelp, professor de neurologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), "amnésia é um comprometimento de memória" e, no caso de Clive, bem grave. "É como se cortássemos um pedaço do rolo do filme ao meio. Não dá para saber nem quando se começou a esquecer, vira um verdadeiro caos."



Oliver Sacks, também professor de neurologia, mas da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, vai além. Após visitar e acompanhar Clive por um dia, ele classificou o caso como "um dos mais devastadores da história", como registrou em artigo na revista "The New Yorker", em 2007. Para ele, Clive está privado da consciência e da própria vida. "Nunca ouvi nada, nem vi, toquei ou cheirei. É como se eu estivesse morto", diz o músico aposentado em trecho do livro escrito pela esposa.



A amnésia que o inglês tem é decorrente de uma lesão no cérebro, mas a perda de memória pode ser causada também por traumas emocionais, como um acidente de carro, violência sexual ou até a separação dos pais. A ciência até detecta o porquê da perda de memória, mas não sabe detalhes que ajudem a evitar ou reverter o problema.



A falta de solução para casos do tipo impede a família de Francine (nome fictício) de encerrar seus surtos. A jovem paranaense, de 20 anos, já fugiu de casa duas vezes e, a despeito do que poderia parecer um arroubo juvenil, apareceu a centenas de quilômetros, sem qualquer noção de identidade.



Na primeira fuga, em 2010, ela prestaria um exame vestibular e não fez o teste. Só foi encontrada a 200 quilômetros de sua cidade, em Jaú, no interior paulista. Resgatada, levou 3 meses para reconhecer os parentes. No segundo sumiço, notícias de seu paradeiro só apareceram 4 dias depois, a 300 quilômetros dali. Ela chegou a pedir ajuda à Polícia Civil, mas não sabia dar qualquer dado sobre si própria.



Um tio de Francine diz que hoje ela está tranquila, mas parece "não saber o que realmente se passa". Para Silvia Bolognani, professora da Unifesp e psicóloga do Grupo de Memória, que atende amnésicos em São Paulo, o período de adaptação é difícil. "Alguns precisam de meses para saber que estão em tratamento. Para se acostumar ao novo ritmo, levam-se anos."



Segundo Silvia, grupos como o da Unifesp e acompanhamento terapêutico são fundamentais. Diários e ferramentas tecnológicas também podem ajudar. E, apesar de a amnésia comprometer a carreira profissional, diz ela, nada impede a continuidade da vida. "A pessoa só não consegue registrar e lembrar de forma adequada de novos fatos. Mas ninguém está ficando burro ou louco."



Perda de memória inspira tramas do cinema





A amnésia é uma grande fonte de inspiração para o cinema. Só na última década foram pelo menos seis filmes de grande repercussão, de gêneros bastante diferentes.



Em "Como Se Fosse A Primeira Vez", de 2004, Henry (Adam Sandler) tem de reconquistar Lucy (Drew Barrymore) todos os dias. Ela tem amnésia e, depois que dorme, esquece de tudo e acorda sempre num mesmo dia: o do acidente de carro que matou sua mãe.



A personagem não tem noção de que é amnésica. Sua família e Henry a levam a um hospital para que entenda o problema. Lá eles conhecem Tom Dez Segundos, que, com a licença poética da comédia, brinca com o caso que lembra muito o de Clive Wearing.



Em "Amnésia", suspense de 2000, um homem usa todo tipo de recurso para substituir a memória: fotos instantâneas de Polaroid, tatuagens pelo o corpo e até recados para si próprio no espelho. Seu objetivo é não ser enganado e encontrar o suposto assassino de sua mulher.



A narrativa não é nada linear. E, em determinado momento, a confusão e o desespero é tão grande que o espectador se vê como o protagonista: incapaz de montar o quebra-cabeça.



O drama "Brilho Eterno De Uma Mente Sem Lembranças", de 2004, apresenta um casal que, após um rompimento dramático, decide estirpar do cérebro todas as memórias relativas aos dois. Quase como uma amnésia seletiva e voluntária.



Os personagens vividos por Jim Carrey e Kate Winslet só não imaginavam que o método não conseguiria apagar tudo. E eles se veem tentando resgatar o que perderam.



Outros que valem ser citados são "Vanilla Sky", de 2001, em que Tom Cruise vive um rico perdido nas próprias memórias após acidente de carro; "Cidade dos Sonhos", de 2001, do diretor David Lynch, também com trama a partir de uma batida; e "A Identidade Bourne", de 2002, onde Matt Damon acorda sem lembrar de nada numa costa do Mar Mediterrâneo.

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