terça-feira, 22 de maio de 2012

Aposta perigosa

Para entender o que leva as pessoas ao vício – e à ruína – em jogos de azar como o bingo, repórter da Folha Universal visita locais de aposta e conta sua experiência de risco ao lado de jogadores compulsivos


Não é fácil, para muitos, resistir a uma aposta. A chance de ficar milionário ou ganhar um troco está por todos os cantos. Os brasileiros podem apostar nas loterias federais e em corridas de cavalo quase todos os dias. Tudo dentro da lei. Ou se aventurar em carteado, máquinas caça-níqueis (que aliás levaram à prisão o empresário Carlinhos Cachoeira, pivô de escândalo político), cassinos clandestinos ou bingos, agora ilegais, e outros jogos proibidos há tempos, como o bicho.


"É um comportamento de origem remota no mundo e de frequência elevada no Brasil. Essa atividade lúdica e banal, porém, pode se transformar num padrão de comportamento que foge ao controle do indivíduo", avisa, logo de cara, Thais Maluf, psicóloga e coordenadora do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad) da Unifesp, São Paulo.


Este repórter, aparentemente, não é viciado e ainda está dentro do controle. Já apostou na loteria, brincou de bingo em evento beneficente e tentou adivinhar um resultado ou outro em bolões de Copa do Mundo. Mas fui escalado para visitar e entender melhor os locais responsáveis por deixar tantos bolsos vazios e tantas pessoas dependentes de jogos – cerca de 2,5 milhões no País, em 2010, segundo dados da Secretaria Nacional de Política sobre Drogas. Pior, com "prejuízos individuais e sociais decorrentes de dívidas, prática de atos ilegais e rompimento de relações familiares e profissionais", como ainda alerta Thais.


A primeira parada foi no tradicional Jockey Club de São Paulo. Os apostadores são homens acima de 40 anos e, em sua maioria, idosos. Vários se conhecem. Acenam um para o outro, trocam uma palavra ou outra. E, às vezes, até se agrupam para conversas animadas – o que não é tão frequente. Chegam sozinhos, suspirando solidão.


Um veterano que lá trabalha há mais de meio século tem a devida paciência e bondade de esmiuçar como a coisa funciona. Os clientes que por ali passam vão soltando pérolas. Alguns tentam me animar: "Imagina, é fácil de aprender". Outros vêm com advertências: "Aí é que começa o problema". O funcionário garante: "Só arranja confusão quem quer".


"Não é bem assim, metade da dependência está ligada ao ambiente", explica Hermano Tavares, psiquiatra e coordenador do Ambulatório do Jogo Patológico (Amjo) do Hospital das Clínicas da USP. Por mais inofensivo que pareça, essa oferta toda faz diferença. "E a outra metade é genética. Por isso, a atenção é maior para quem tem familiares com antecedentes de dependência, com problemas de jogo, álcool, cigarro ou drogas", diz.


Decido arriscar logo no 1º páreo. A aposta mínima é de R$ 2. O moço ao lado sugere o cavalo "Boneco de Vento". Mas gosto do "Driblador", um azarão, e já imagino minha fortuna. Os cavalos passam voando. Sinto a adrenalina, torço para que meu favorito atropele no final, mas acaba em quarto lugar Como uma criança, só penso em ir de novo!


Com o programa em mãos, busco mais dicas. Ganho, em troca, a pecha de "arisco", jargão para iniciante que ganha na primeira visita. Percebo hostilidade, inveja e, ao mesmo tempo, assim como todos, acredito que sou o predestinado a faturar. Tudo bem, vou confiar nas táticas básicas: nome, número, uni-duni-tê... Nem o favorito vinga. Só depois de uma tarde inteira e R$ 40 a menos no bolso – confesso que decidi perder a conta em certo momento – paro e penso: "Será que não vou ganhar?" Deixo a consciência sentada num canto e vou para mais um páreo. Desta vez, não escolho o cavalo. Aposto na joqueta Jeane Alves, vitoriosa em duas corridas anteriores. E ela me decepciona: em segundo lugar, por meio corpo. E eu me decepciono com tudo aquilo.


"Você fica pensando como ganhar. Se ganha, em como ganhar mais. Se perde, em recuperar. Se perde tudo, onde arranjar dinheiro para recuperar tudo", diz um jogador compulsivo em recuperação, como se autodenominam os integrantes dos Jogadores Anônimos.


Não é tão fácil vencer uma aposta. E perde-se muito. Por que, então, insistir? "As pessoas apostam pela adrenalina", responde o psiquiatra Hermano Tavares. Ao seu lado, alguns trabalhos sobre o tema dizem, inclusive, que a sensação de euforia é a mesma de quem usa drogas. "Nós alimentamos a expectativa de que algo grande sempre está por vir", contribui também o nosso entrevistado anônimo, que para os médicos é o jogador patológico.


A ideia de que este vício é um desvio de personalidade, segundo Tavares, "é preconceituosa". Jogar compulsivamente é, sim, um problema. Ou melhor: uma doença mental, assim reconhecida pela Associação de Psiquiatria Americana desde 1994, comum nos impulsivos e geralmente relacionada à ansiedade e à depressão. Caracterizada pela perda do controle e pela persistência mesmo diante dos problemas que decorrem. "O dinheiro evapora como uma gota de óleo na frigideira quente. É inacreditável ver que tudo o que você construiu virou pó", afirma outro jogador, também de identidade preservada.


No bingo, minha segunda parada, ninguém parece se importar com isso. As cinco velhinhas que dividem mesa comigo num estabelecimento ilegal em Santo Amaro acham tudo aquilo "pura diversão". Quando sabem que vou gastar só R$ 20, riem. "Não saio daqui antes de torrar R$ 80, R$ 100", confessa uma delas. O que é plausível. As rodadas não duram nem três minutos e cada cartela custa R$ 2. Numa conta rápida, em meia hora, lá se vão os meus R$ 20. Duas horinhas são o suficiente para atingir a meta da senhora.




"A gente sempre acaba ganhando", tenta se convencer outra, que aproveita a proximidade do trabalho para "passar o tempo". Não consigo entender exatamente como. O ambiente não é de todo claro e, sem janelas, abafado. Completamente lotado, com cerca de 500 pessoas, a maioria idosas, espremidas numa loja comprida, de 100 metros, ao som nauseabundo e frenético de uma locutora cantando números sem parar.


Todos se concentram, cabeça baixa, marcando de canetinha números na cartela num ritmo que deixa qualquer principiante – como eu – perdido. Quando me localizo, alguém grita: "Linha!". Óóóóóó [alguém ganhou o primeiro prêmio]. E, sem que dê tempo para checar a situação: "Bingo!" [alguém completou a cartela e levou a bolada]. E lá vem novo óóóóó, que se repetiria sempre em seguida ao berro do vencedor, como uma surpresa, verdadeira injustiça divina. Mesmo assim, todos insistem em peitar o destino mais uma vez. Vou atrás. Sinto, de novo, a adrenalina e mentalizo: agora vou ganhar. E, cartelas depois, percebo que estou no ritmo de todos, um zumbi alucinante, trancafiado e ainda sob o risco de ser detido.


É tudo muito tenso. Busco engatar uma conversa para aliviar, mas não há tempo, nem nos intervalos. Só lamentos do número que quase saiu, ou, "puxa vida, faltaram dois" e "nossa, essa locutora está dando azar". Saio e penso como isso ocorre a menos de 400 metros de um posto da Polícia Militar.


Fora o prejuízo, quantas histórias ali começam e viram os dramas que conheci nos Jogadores Anônimos? Ouvi gente que queimou carro de estimação no bingo. Um jamais viu a filha de 2 anos e a maioria perdeu bens da família, da empresa ou particulares simplesmente apostando a própria sorte. Lembro da sentença de Tavares: "A única pessoa que está 100% livre do risco de dependência é quem nunca jogou".


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Novo tratamento: correr reduz desejo de jogar


Além dos tratamentos convencionais, com acompanhamento psiquiátrico, psicológico e prescrição de medicamentos em alguns casos, surge agora uma alternativa para diminuir o desejo dos jogadores patológicos pela aposta: a atividade física.


Já se sabia que a prática ajudava a combater a ansiedade e a depressão, principais sintomas ligados à doença, mas ainda não se tinha certeza de que teriam efeito sobre dependentes de jogos de azar.


O primeiro estudo a chegar a essa conclusão foi apresentado em novembro do ano passado na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo pela educadora física Daniela Lopes.


Seu trabalho acompanhou 33 pacientes do Ambulatório do Jogo Patológico (Amjo), maiores de 18 anos, voluntários e capazes de seguir o programa de exercícios aeróbicos de 8 semanas.


Após alongamento, o grupo caminhava, trotava ou corria ao ar livre por 50 minutos, no limite de cada um. E o que se verificou, consultando os jogadores antes e depois desse esforço, pedindo que apontassem numa escala de zero a dez seu grau de fissura, sempre foi a redução. A queda se verificou tanto no dia da atividade como no decorrer das semanas – e também para os níveis de ansiedade, depressão e outros fatores relacionados ao comportamento do jogo.


"Os pacientes dão depoimentos de que têm ajudado muito. Um deles, inclusive, hoje é um desses maratonistas amadores", conta Daniela Lopes, também responsável por puxar as corridas. "Os médicos têm começado a incluir a atividade física no tratamento", acrescenta.


Em recuperação: para sempre


A dependência não tem idade para começar. Prova disso é o jogador que deu entrevista. Também sob a condição de anonimato, ele lembrou que com 12 anos "já começava suas estripulias".


Entregador de pão no interior de São Paulo, passou a frequentar bingos em casas de família. Era aí que morria o troco da venda de pães e, também, nasciam as dívidas.


A solução para acabar com o problema foi fugir do padeiro. Deixou de aparecer para o serviço e, claro, a mãe soube. Envergonhada, ela resolveu com "uma surra".


E o que se viu foi um reincidente. "Sempre gostei do jogo", confessa. Ele vivia a ilusão de "que tinha algum controle", ainda que, anos mais tarde, já tivesse virado noites jogando, mentisse para a mulher e não parasse de contrair dívidas: "Detonei tudo o que tinha e mais um pouco".


A ficha só caiu aos 48 anos. "Você só percebe quando está no fundo do poço mesmo. Era muito mais sério do que imaginava", diz. Ainda hoje não tem ideia do que aconteceu para degringolar e perder tudo: "Tinha casa, carro, poupança, investimentos. Não faltava nada".


A virada veio com uma sugestão da mulher. "Ela me disse que eu deveria procurar um psicólogo." As sessões ajudaram, mas foi numa sede dos Jogadores Anônimos que ele achou "incentivo maior, por serem pessoas que estavam passando pelo mesmo problema".


A despeito de sua atitude para tratar a doença e reconhecê-la, as cobranças e contas continuavam a chegar. Ajudou muito a orientação financeira que recebeu do grupo após os 30 primeiros dias, e a segurança para resolver tudo aos poucos, uma coisa de cada vez.


Com "um alicerce bem construído", superou todas as questões pendentes e já faz uma década que não joga. Mesmo assim, não dá trégua: "Para não alimentar o bicho que está dentro de mim, dormindo". A cada dia que vence a batalha, provavelmente, deve ir para cama repetindo o mantra que encerra as reuniões dos Jogadores Anônimos: "Só por hoje".

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