Infância ameaçada
Uganda, país com 20 milhões de crianças e jovens, perde
vidas para rituais de feitiçaria. O programa Domingo Espetacular mostra
detalhes desse infanticídio, raramente punido
O sacrifício de crianças é uma prática que
aflige o coração da África. Em Uganda, repórteres da "Rede Record" viram
de perto situações cruéis da violência humana, que já resultaram em
quase 100 mortes de jovens nos últimos 5 anos, segundo os registros da
Fundação Gideon – que também aponta a existência de mais de 3 mil
crianças desaparecidas. A reportagem será exibida no Domingo
Espetacular. O governo local não nega o problema, mas, oficialmente,
admite 50 mortes entre 2006 e 2011 e o desaparecimento de cerca de 300
crianças.
As crianças, ou partes de seus corpos,
seriam usadas em rituais de feitiçaria. Para se ter uma ideia da
situação, muitas pessoas de Uganda ainda acreditam que colocar a cabeça
de uma criança na fundação de um prédio resultará em prosperidade para a
sua construção. Se o prédio a ser construído for comercial, a prática é
mais comum ainda. Há relatos sobre crianças jogadas vivas sob a
fundação de algumas obras.
"Boa parte dos
países africanos ainda pratica certos tipos de rituais de padrões
questionáveis. E quem aderiu aos princípios universais tem tentado mudar
essa situação ou combater esses rituais, como Angola e África do Sul.
Apesar de existir um certo relativismo cultural, não se pode aceitar
ações que levem ao genocídio", diz o professor de História da
Universidade de Brasília, Anderson Oliva. "A ONU e as Nações Africanas
têm tomado medidas com alguma efetividade para combater isso."

Não há, no
entanto, um combate aos rituais por falta de vontade política por parte
do governo local e até por medo de represálias dos feiticeiros, e o
temor de que supostas magias que possam ser aplicadas contra quem
combater essa prática. Numa casa de magia visitada em Uganda pela
reportagem da "Rede Record", uma assistente do bruxo Jajá explicou que
ele é amigo do presidente do país, Yoweri Kaguta Museveni, no poder
desde 1986. Segundo ela, a pedido do próprio Yoweri, o bruxo ajudou na
campanha que o reelegeu para mais um período de governo.
Sem qualquer
ajuda do governo no controle à atuação dos feiticeiros para evitar essas
mortes, as crianças de Uganda contam mais com denúncias da imprensa
internacional – além do trabalho de organizações não governamentais, a
maioria do exterior, além de algumas poucas mas eficientes entidades
locais. Uma das organizações locais mais atuantes é a Fundação Gideon,
criada por um pai indignado que fez do filho um dos símbolos da luta
contra a violência que ocorre naquele país.
Gideon era um
menino saudável que acabou morto e decapitado a poucos metros de casa,
quando tinha 4 anos. Para que sua morte não fosse apenas mais um número
na triste estatística, o pai dele, Santos Labeja, que é professor,
resolveu criar no terreno da família, na cidade de Soroti, a 400
quilômetros da capital, Kampala, uma escola e a fundação que reúne dados
sobre muitos casos de sacrifício infantil em Uganda.
Labeja conta
que um rapaz estranho convenceu o menino Gideon a ir com ele até uma
casa não muito longe dali. Lá, o rapaz o decapitou e tentou retirar sua
arcada dentária, mas não teve tempo. Os vizinhos que saíram em busca do
menino tentaram linchar o assassino, mas ele foi salvo pela polícia. A
mãe de Gideon diz que a dor da família só piorou quando a identidade do
criminoso foi revelada: ele é filho de um oficial militar. Segundo ela, o
rapaz fugiu da cadeia e nunca mais foi visto.
O sofrimento
da família transformou-se em força para uma luta quase solitária, na
qual a missão é evitar que outras crianças tenham o mesmo destino.
Labeja pesquisou e catalogou 94 ataques contra crianças e adolescentes
desde a morte de Gideon, em 2006. Poucos sobreviveram. As atrocidades
também são noticiadas nos jornais locais, que exibem corpos de crianças
mutilados e, muitas vezes, decapitados.
Outra
história de sacrifício infantil em Uganda é a vida de George, de 5 anos
de idade. Quando tinha 3, o menino foi castrado para que seu pênis
fosse utilizado em um ritual. Mesmo tão novo, o garoto já contraiu
malária, doença infecciosa comum na África, e ainda não entende
exatamente o que aconteceu, enquanto luta para minimizar os traumas
causados pelo ritual pelo qual foi submetido. Na ocasião, George foi
raptado por um vizinho, em uma cidade perto de Kampala, antes de ser
resgatado pela família e entregue aos cuidados de uma organização não
governamental, já que os pais não têm recursos para bancar seu
tratamento. George já passou por várias cirurgias para a reconstrução do
pênis.
Em um país com
quase 20 milhões de crianças e adolescentes, sobram história macabras.
Ali é comum encontrar casas de trabalhos com astrologia, tratamentos à
base de ervas e muitas promessas de magia para solucionar problemas
financeiros. Nas cerimônias para buscar prosperidade, dinheiro, saúde é
normal o uso de sangue de animais. Mas, em alguns casos, crianças são
sacrificadas para rituais, situação admitida até mesmo por uma
curandeira entrevistada pela "TV Record", que diz ser uma prática mais
comum em Kampala.
Os registros
desses rituais estão em toda Uganda. A cerca de 30 quilômetros de
Soroti, um vilarejo marcado por miséria e isolamento, o menino Francis,
de apenas 3 anos, foi mais uma vítima. Enquanto brincava sozinho, o
garoto foi morto por ritualistas e apenas partes de seu copo foram
encontradas por familiares, que acreditam na utilização da arcada
dentária, braços e órgãos em rituais de magia. Um suspeito foi preso, um
raro caso de punição no país.
Também no
interior de Uganda, Michael, de 4 anos, foi outra vítima de rituais, e
seu corpo sequer foi encontrado para que fosse enterrado pelos parentes.
A situação deixa a família desolada e descrente do trabalho de
investigação da polícia.
Mais comum do
que a pena para quem comete esse tipo de ato desumano ou pais
desesperados com a situação é encontrar familiares que vendem crianças
para os rituais. No país em que dois a cada dez habitantes acreditam em
feitiçaria há até tabela de preços para os corpos. Na zona rural,
jornais denunciam a venda de um corpo de criança por cerca de R$ 11 mil.
Na capital, a vida infantil pode valer até R$ 50 mil.
Existem
feiticeiros que chegam a exigir corpos sem marcas, cicatrizes ou doenças
para potencializar a magia. Nesses casos, o preço pago pela vida da
criança é influenciado, um motivo a mais para dificultar o fim do
massacre num país que, além de pobre no quesito humanidade, é miserável
financeiramente