Não é fácil,
para muitos, resistir a uma aposta. A chance de ficar milionário ou
ganhar um troco está por todos os cantos. Os brasileiros podem apostar
nas loterias federais e em corridas de cavalo quase todos os dias. Tudo
dentro da lei. Ou se aventurar em carteado, máquinas caça-níqueis (que
aliás levaram à prisão o empresário Carlinhos Cachoeira, pivô de
escândalo político), cassinos clandestinos ou bingos, agora ilegais, e
outros jogos proibidos há tempos, como o bicho.
"É um comportamento de origem remota no
mundo e de frequência elevada no Brasil. Essa atividade lúdica e banal,
porém, pode se transformar num padrão de comportamento que foge ao
controle do indivíduo", avisa, logo de cara, Thais Maluf, psicóloga e
coordenadora do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes
(Proad) da Unifesp, São Paulo.
Este repórter,
aparentemente, não é viciado e ainda está dentro do controle. Já
apostou na loteria, brincou de bingo em evento beneficente e tentou
adivinhar um resultado ou outro em bolões de Copa do Mundo. Mas fui
escalado para visitar e entender melhor os locais responsáveis por
deixar tantos bolsos vazios e tantas pessoas dependentes de jogos –
cerca de 2,5 milhões no País, em 2010, segundo dados da Secretaria
Nacional de Política sobre Drogas. Pior, com "prejuízos individuais e
sociais decorrentes de dívidas, prática de atos ilegais e rompimento de
relações familiares e profissionais", como ainda alerta Thais.
A primeira
parada foi no tradicional Jockey Club de São Paulo. Os apostadores são
homens acima de 40 anos e, em sua maioria, idosos. Vários se conhecem.
Acenam um para o outro, trocam uma palavra ou outra. E, às vezes, até se
agrupam para conversas animadas – o que não é tão frequente. Chegam
sozinhos, suspirando solidão.
Um
veterano que lá trabalha há mais de meio século tem a devida paciência e
bondade de esmiuçar como a coisa funciona. Os clientes que por ali
passam vão soltando pérolas. Alguns tentam me animar: "Imagina, é fácil
de aprender". Outros vêm com advertências: "Aí é que começa o problema".
O funcionário garante: "Só arranja confusão quem quer".
"Não é bem
assim, metade da dependência está ligada ao ambiente", explica Hermano
Tavares, psiquiatra e coordenador do Ambulatório do Jogo Patológico
(Amjo) do Hospital das Clínicas da USP. Por mais inofensivo que pareça,
essa oferta toda faz diferença. "E a outra metade é genética. Por isso, a
atenção é maior para quem tem familiares com antecedentes de
dependência, com problemas de jogo, álcool, cigarro ou drogas", diz.
Decido
arriscar logo no 1º páreo. A aposta mínima é de R$ 2. O moço ao lado
sugere o cavalo "Boneco de Vento". Mas gosto do "Driblador", um azarão, e
já imagino minha fortuna. Os cavalos passam voando. Sinto a adrenalina,
torço para que meu favorito atropele no final, mas acaba em quarto
lugar Como uma criança, só penso em ir de novo!
Com o programa
em mãos, busco mais dicas. Ganho, em troca, a pecha de "arisco", jargão
para iniciante que ganha na primeira visita. Percebo hostilidade,
inveja e, ao mesmo tempo, assim como todos, acredito que sou o
predestinado a faturar. Tudo bem, vou confiar nas táticas básicas: nome,
número, uni-duni-tê... Nem o favorito vinga. Só depois de uma tarde
inteira e R$ 40 a menos no bolso – confesso que decidi perder a conta em
certo momento – paro e penso: "Será que não vou ganhar?" Deixo a
consciência sentada num canto e vou para mais um páreo. Desta vez, não
escolho o cavalo. Aposto na joqueta Jeane Alves, vitoriosa em duas
corridas anteriores. E ela me decepciona: em segundo lugar, por meio
corpo. E eu me decepciono com tudo aquilo.
"Você fica
pensando como ganhar. Se ganha, em como ganhar mais. Se perde, em
recuperar. Se perde tudo, onde arranjar dinheiro para recuperar tudo",
diz um jogador compulsivo em recuperação, como se autodenominam os
integrantes dos Jogadores Anônimos.
Não é tão
fácil vencer uma aposta. E perde-se muito. Por que, então, insistir? "As
pessoas apostam pela adrenalina", responde o psiquiatra Hermano
Tavares. Ao seu lado, alguns trabalhos sobre o tema dizem, inclusive,
que a sensação de euforia é a mesma de quem usa drogas. "Nós alimentamos
a expectativa de que algo grande sempre está por vir", contribui também
o nosso entrevistado anônimo, que para os médicos é o jogador
patológico.
A ideia de que
este vício é um desvio de personalidade, segundo Tavares, "é
preconceituosa". Jogar compulsivamente é, sim, um problema. Ou melhor:
uma doença mental, assim reconhecida pela Associação de Psiquiatria
Americana desde 1994, comum nos impulsivos e geralmente relacionada à
ansiedade e à depressão. Caracterizada pela perda do controle e pela
persistência mesmo diante dos problemas que decorrem. "O dinheiro
evapora como uma gota de óleo na frigideira quente. É inacreditável ver
que tudo o que você construiu virou pó", afirma outro jogador, também de
identidade preservada.
No bingo,
minha segunda parada, ninguém parece se importar com isso. As cinco
velhinhas que dividem mesa comigo num estabelecimento ilegal em Santo
Amaro acham tudo aquilo "pura diversão". Quando sabem que vou gastar só
R$ 20, riem. "Não saio daqui antes de torrar R$ 80, R$ 100", confessa
uma delas. O que é plausível. As rodadas não duram nem três minutos e
cada cartela custa R$ 2. Numa conta rápida, em meia hora, lá se vão os
meus R$ 20. Duas horinhas são o suficiente para atingir a meta da
senhora.
"A gente
sempre acaba ganhando", tenta se convencer outra, que aproveita a
proximidade do trabalho para "passar o tempo". Não consigo entender
exatamente como. O ambiente não é de todo claro e, sem janelas, abafado.
Completamente lotado, com cerca de 500 pessoas, a maioria idosas,
espremidas numa loja comprida, de 100 metros, ao som nauseabundo e
frenético de uma locutora cantando números sem parar.
Todos se
concentram, cabeça baixa, marcando de canetinha números na cartela num
ritmo que deixa qualquer principiante – como eu – perdido. Quando me
localizo, alguém grita: "Linha!". Óóóóóó [alguém ganhou o primeiro
prêmio]. E, sem que dê tempo para checar a situação: "Bingo!" [alguém
completou a cartela e levou a bolada]. E lá vem novo óóóóó, que se
repetiria sempre em seguida ao berro do vencedor, como uma surpresa,
verdadeira injustiça divina. Mesmo assim, todos insistem em peitar o
destino mais uma vez. Vou atrás. Sinto, de novo, a adrenalina e
mentalizo: agora vou ganhar. E, cartelas depois, percebo que estou no
ritmo de todos, um zumbi alucinante, trancafiado e ainda sob o risco de
ser detido.
É tudo muito
tenso. Busco engatar uma conversa para aliviar, mas não há tempo, nem
nos intervalos. Só lamentos do número que quase saiu, ou, "puxa vida,
faltaram dois" e "nossa, essa locutora está dando azar". Saio e penso
como isso ocorre a menos de 400 metros de um posto da Polícia Militar.
Fora o
prejuízo, quantas histórias ali começam e viram os dramas que conheci
nos Jogadores Anônimos? Ouvi gente que queimou carro de estimação no
bingo. Um jamais viu a filha de 2 anos e a maioria perdeu bens da
família, da empresa ou particulares simplesmente apostando a própria
sorte. Lembro da sentença de Tavares: "A única pessoa que está 100%
livre do risco de dependência é quem nunca jogou".
 |
Add caption |
Novo tratamento: correr reduz desejo de jogar
Além dos
tratamentos convencionais, com acompanhamento psiquiátrico, psicológico e
prescrição de medicamentos em alguns casos, surge agora uma alternativa
para diminuir o desejo dos jogadores patológicos pela aposta: a
atividade física.
Já se sabia
que a prática ajudava a combater a ansiedade e a depressão, principais
sintomas ligados à doença, mas ainda não se tinha certeza de que teriam
efeito sobre dependentes de jogos de azar.
O primeiro
estudo a chegar a essa conclusão foi apresentado em novembro do ano
passado na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo pela
educadora física Daniela Lopes.
Seu trabalho
acompanhou 33 pacientes do Ambulatório do Jogo Patológico (Amjo),
maiores de 18 anos, voluntários e capazes de seguir o programa de
exercícios aeróbicos de 8 semanas.
Após
alongamento, o grupo caminhava, trotava ou corria ao ar livre por 50
minutos, no limite de cada um. E o que se verificou, consultando os
jogadores antes e depois desse esforço, pedindo que apontassem numa
escala de zero a dez seu grau de fissura, sempre foi a redução. A queda
se verificou tanto no dia da atividade como no decorrer das semanas – e
também para os níveis de ansiedade, depressão e outros fatores
relacionados ao comportamento do jogo.
"Os pacientes
dão depoimentos de que têm ajudado muito. Um deles, inclusive, hoje é um
desses maratonistas amadores", conta Daniela Lopes, também responsável
por puxar as corridas. "Os médicos têm começado a incluir a atividade
física no tratamento", acrescenta.
Em recuperação: para sempre
A
dependência não tem idade para começar. Prova disso é o jogador que deu
entrevista. Também sob a condição de anonimato, ele lembrou que com 12
anos "já começava suas estripulias".
Entregador de
pão no interior de São Paulo, passou a frequentar bingos em casas de
família. Era aí que morria o troco da venda de pães e, também, nasciam
as dívidas.
A solução para
acabar com o problema foi fugir do padeiro. Deixou de aparecer para o
serviço e, claro, a mãe soube. Envergonhada, ela resolveu com "uma
surra".
E o que se viu
foi um reincidente. "Sempre gostei do jogo", confessa. Ele vivia a
ilusão de "que tinha algum controle", ainda que, anos mais tarde, já
tivesse virado noites jogando, mentisse para a mulher e não parasse de
contrair dívidas: "Detonei tudo o que tinha e mais um pouco".
A ficha só
caiu aos 48 anos. "Você só percebe quando está no fundo do poço mesmo.
Era muito mais sério do que imaginava", diz. Ainda hoje não tem ideia do
que aconteceu para degringolar e perder tudo: "Tinha casa, carro,
poupança, investimentos. Não faltava nada".
A virada veio
com uma sugestão da mulher. "Ela me disse que eu deveria procurar um
psicólogo." As sessões ajudaram, mas foi numa sede dos Jogadores
Anônimos que ele achou "incentivo maior, por serem pessoas que estavam
passando pelo mesmo problema".
A despeito de
sua atitude para tratar a doença e reconhecê-la, as cobranças e contas
continuavam a chegar. Ajudou muito a orientação financeira que recebeu
do grupo após os 30 primeiros dias, e a segurança para resolver tudo aos
poucos, uma coisa de cada vez.
Com "um
alicerce bem construído", superou todas as questões pendentes e já faz
uma década que não joga. Mesmo assim, não dá trégua: "Para não alimentar
o bicho que está dentro de mim, dormindo". A cada dia que vence a
batalha, provavelmente, deve ir para cama repetindo o mantra que encerra
as reuniões dos Jogadores Anônimos: "Só por hoje".